sábado, 23 de maio de 2020

Notas de uma quarentena #5 (ou: "A vontade de mandar uma 'jornalista' à merda!")

A cultura sempre foi o parente pobre neste cantinho à beira-mar plantado. Sucessivamente desvalorizada e espezinhada pelos diversos Governos. Batemos no fundo quando, há uns anos, nem tivemos Ministério da Cultura, na legislatura do Passos Coelho.

Na história da Humanidade, são inúmeros os exemplos de como um povo com pouca cultura, pouco instruído, é um povo manipulável - o que, infelizmente, dá muito jeito aos políticos... Um povo pouco instruído come as patranhas que lhe dão, sem questionar. Inversamente, quanto mais instruído for o povo, mais questiona, menos se acomoda, mais luta por melhores condições. E é por isso que a cultura é uma arma de arremesso política: dá jeito cagar na cultura.

O meio artístico em Portugal é precário. E achar o contrário é viver no mundo da lua. Sim, temos alguns artistas mais reconhecidos, que vão tendo sempre trabalho, que fazem bom dinheiro. Mas são poucos. Não há um "star system" em Portugal, somos um país de pequena dimensão, e a maioria dos artistas vivem na precariedade. Mas o meio artístico não se esgota nos artistas, nos "front-men/women", naqueles que conhecemos. O meio artístico vive de artistas e de técnicos: técnicos de som, técnicos de iluminação, produtores, operadores de câmara, promotores, e tantas outras profissões que fazem a magia acontecer. O que chega ao público é "apenas" o produto final de um trabalho conjunto de inúmeras pessoas.

Eu pertenço ao meio artístico quase desde sempre. Tive bandas, fui músico amador durante uns aninhos. Tive algumas experiências enquanto DJ. Fui técnico de som. E aventurei-me há pouco mais de 1 ano por conta própria enquanto produtor musical. Conheço o meio artístico por dentro. O verdadeiro e real meio artístico português - onde temos "meia dúzia" que sobressaem, que são conhecidos, que enchem salas, que têm sempre trabalho; mas onde temos em larga maioria os que passam longos períodos de tempo sem trabalho, os que trabalham que nem doidos e são incrivelmente mal remunerados, os que são as mãos invisíveis de produtos finais brutais mas que raramente vêem o seu trabalho reconhecido com os euros que merecem.

Eu pertenço aos que vivem na sombra. Não me posso queixar porque fui durante alguns anos um privilegiado dentro do meio - trabalhei a contrato e era bem-pago. Mas agora estou por conta própria. E faço parte do grupo que ficou sem trabalho por causa da pandemia. E faço parte do grupo de pessoas que quer mandar a Joana Latino à merda!

A sua formação e a sua profissão (jornalista - mas presumo que tenha entregue a carteira para se dedicar à fofoquice) deveriam, em tese, ter sensibilizado a senhora para as condições dos técnicos que a rodeiam - e dos técnicos e artistas em geral. Mas pelos vistos não, senão não lhe tinha saído da boca tamanha barbaridade.

Atenção: respect máximo ao Bruno Nogueira. Acho (e não é de agora) que é um génio no que faz. Mas a Joana Latino não pode medir uma classe artística maioritariamente precária e invisível com base nos nomes mais reconhecidos em Portugal! Não somos todos Brunos, não somos todos Markls, não somos todos Manzarras, não somos todos Nuno Lopes, não somos todos Albanos. E sobretudo, nós, técnicos, somos muitas vezes (quase sempre?) desvalorizados, ignorados, desprezados!

A pandemia veio tirar o trabalho à esmagadora maioria das pessoas que integram a classe artística. Há pessoas a passar fome! Há companhias de teatro amadoras que certamente não vão conseguir sobreviver a isto! Há um número absurdo de pessoas que estão na merda - e que assim continuarão certamente por mais tempo, porque enquanto o país vai retomando a normalidade possível, o meio artístico não o pode fazer. Porque não podem existir ajuntamentos de pessoas! E mesmo que a criatividade e as normas da DGS permitam uns pozinhos artísticos aqui e ali (vou-me escusar de comentar as regras para espaços fechados), não há milagres: o sector artístico não vai retomar a normalidade tão depressa, é impossível!

Portanto, em nome de todos os que fazem parte do meio artístico (todos os artistas, todos os técnicos, todas as mãos invisíveis!), estimo que a Joana Latino ganhe vergonha na cara!

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